terça-feira, 3 de março de 2009

Escândalo em Curaçao (II)



Continuação


"O problema, evidentemente, não era que as regras não podiam ser alteradas. O problema é que quando elas são alteradas sob um pré-julgamento contra um dos lados em disputa - uma disputa que, inclusive, ia bem além do xadrez - e a favor de outro, está aberto o caminho para que ninguém respeite regra alguma. Assim, a alteração das regras, que começara com a revogação do direito do campeão ao match-revanche, deu mais um passo em direção à anarquia que seria alcançada com a cisão de Kasparov, em 1993.

O pior de tudo, provavelmente, foi que a acusação de Fischer, colocou em defensiva não somente os soviéticos, mas pessoas que estavam bastante longe de concordar com a propaganda anti-comunista. O autor destas linha deve confessar, honestamente, que foi um desses.

Mas isso não aconteceu por acaso: mesmo hoje, basta uma releitura do artigo de Fischer para perceber que o autor não está mentindo, pelo menos não no sentindo em que, em geral, se usa a palavra ´mentira`. Ele realmente tinha convicção no que dizia. Essa é a força maior do texto, pois não é uma experiência comum para a maioria das pessoas travar contato com alguém convicto, não de uma crença, mas de um fato, e, ao mesmo tempo, o suposto fato não ser verdade.

Para dificultar ainda mais a distinção entre fato e fantasia, entrou em cena a máquina da mídia e dos órgãos governamentais norte-americanos. Pouco tempo antes, em 1958, o FBI desconfiara que Fischer havia sido recrutado como espião pelos soviéticos. Agora, haviam conseguido, um propagandista ideal, ainda que inconsciente (ou ideal por causa disso mesmo): alguém que acreditava no que dizia, e contava uma história, digamos, plausível.

Nessa época, evidentemente, não se sabia que o FBI vigiava a família de Fischer desde a década de 40. Os documentos referentes a isso somente seriam liberados, com inúmeras tarjas negras sobre o texto, em 2002.

A última dificuldade foram os desmentidos soviéticos (inclusive os de Keres e Petrosian), que não ajudaram a elucidar a questão. Eram desmentidos - o que é outro sinal da defensiva dos soviéticos a partir de Kruschev - genéricos. Não demoliam os desmontavam as alegações do oponente - o que, sem dúvida, é o caminho seguro para a derrota, mesmo quando se está com a verdade, e o adversário com a mentira. Se a verdade pudesse se impor somente porque é verdade - ou seja, sem o esforço dos que estão com ela para desmacarar a mentira - o nazismo e o macartismo não teriam existido, e o mundo de hoje seria um maravilhoso Shangri-La. Mas não é assim, sem luta, que as coisas funcionam.


CURAÇAO


Examinemos as alegações.

Em seu artigo, Fischer exectua Tahl da conspiração soviética. Até ele reparou que incluí-lo transformaria, antes de tudo para si próprio, a acusação num absurdo. Se há algo que Tahl jamais faria, era, precisamente, combinar um empate. Além disso, depois de 21 rodadas, ele abandonou o torneio por motivos de saúde - e Fischer visitou-o no hospital, sendo recebido de forma muito amistosa pelo ex-campeão mundial. Portanto, para acreditar na conspiração, Fischer teria que colocar Tahl fora dela.
Porém, como observou o enxadrista e escritor holandês Tim Krabbé, também é necessário excetuar Korchnoi - não exatamente, como diz Krabbé, porque ele sempre negou, mas por razões políticas e também porque até hoje ninguém conseguiu incluí-lo nessa história. (V. Tim Krabbé, The legend of the Curaçao conspiracy, in Open Chess Diary, nota 299, de 22/10/2005).
Com isso, a conspiração fica reduzida ao envolvimento de três jogadores soviéticos: Petrosian, Keres e Geller. Novamente, como em 1948, é sobre Keres que se concentra a intriga. Recentemente, buscou-se o apoio de Yuri Averbakh (coisa, aliás, bastante fácil - v. parte 5 deste artigo) para dizer que "é claro que foi tudo manipulado" para prejudicar Keres (entrevista de Averbakh para a Schaaknieuws, cit. por Krabbé).
De onde se conclui que, em Curaçao, 1962, teria existido, não apenas uma, mas duas conspirações soviéticas: uma, com a participação de Keres, contra Fischer: a segunda, dos outros soviéticos contra o próprio Keres...
(continua)

segunda-feira, 2 de março de 2009

Escândalo em Curaçao



Da série de artigos assinados por Carlos Batista Lopes, com o título geral de Misérias e Glórias do Xadrez, encontramos este:
"O artigo de Fischer, How the russians fixed worid chess (Como os russos fraudam o xadrez mundial), publicado na Sports Illustrated, em agosto de 1962, pode ser resumido rapidamente: durante o Torneio de Candidatos de Curaçao, realizado dois meses antes, os soviéticos (havia cinco entre os oito competidores: Tahl, Petrosian, Keres, Geller e Korchnoi), combinavam os resultados, em geral empatando rapidamente entre si, enquanto jogavam para valer contra os outros, isto é, contra Fischer (nitidamente, ele não estava muito preocupado com os outros participantes não-soviéticos: o húngaro-americano Pal Benko e o tcheco-eslovaco Miroslav Filip. Mas como ninguém achava que o excelente Filip tivesse chances, muito menos Benko, a questão se resumia, realmente, a Fischer).
Assim, era através da trapaça que, supostamente, os soviéticos conseguiam vencer torneios e, sobretudo, manter o título de campeão mundial. Por consequência essa também era a razão de Fischer não haver saído de Curaçao como o desafiante de Botvinnik: os soviéticos, isto é, os comunistas, trapacearam para impedí-lo.
Note-se que, pelo menos explicitamente, Fischer não está se queixando de que os soviéticos se ajudavam mutuamente na análise de suas partidas, o que era público - e lícito. O próprio Botvinnik, na análise de sua única partida com Fischer (ocorrida no mesmo ano, na Olímpiada de Varna), declarou que obtivera o empate numa situação desfavorável, devido a uma idéia de seu colega Efim Geller. Explicitamente, não é disso que Fischer se queixa - embora esta nos pareça a verdadeira razão de seu inconformismo, como veremos até o final desta parte de nosso artigo.
A queixa explícita de Fischer é a de que os soviéticos combinavam seus resultados, o que não era lícito. Além disso, segundo ele, durante seus jogos os soviéticos rodeavam a mesa e, ignorando que entendia o idioma russo, davam sugestões e/ou instruções aos compatriotas que o enfrentavam, e o atrapalhavam com a tagarelice. Como este problema poderia ser resolvido simplesmente com uma queixa ao árbitro, não nos deteremos mais - assim como não se detiveram nenhum dos que apoiaram Fischer, exceto fugazmente.
No entanto, a primeira acusação perdurou por longos anos e, na verdade, ainda perdura. Ela ainda é, com as copiosas ampliações de Kasparov, uma das bases da campanha anti-comunista -e não apenas no xadrez. Livros e autores que se pretendem muito sérios, continuam repetindo-a. (v.p.ex., o livro de 2005 do GM holandês Jan Timman, Curaçao 1962 - The Battle of Minds That Shook the Chessa World - e esse autor não apenas Grande Mestre, mas um ex-candidato a campeão mundial, e editor-chefe da New in Chess, hoje, provavelmente, a mais lida revista sobre xadrez.
Sobretudo, a acusação de Fischer foi o pretexto para um atropelo geral nas regras do campeonato mundial. A FIDE, sob pressão norte-americana, acabou com o Torneio de Candidatos, substituindo-o por matches entre os pretendentes ao título - ou seja, tratou como verdadeira a acusação. (continua)