
Continuação
"O problema, evidentemente, não era que as regras não podiam ser alteradas. O problema é que quando elas são alteradas sob um pré-julgamento contra um dos lados em disputa - uma disputa que, inclusive, ia bem além do xadrez - e a favor de outro, está aberto o caminho para que ninguém respeite regra alguma. Assim, a alteração das regras, que começara com a revogação do direito do campeão ao match-revanche, deu mais um passo em direção à anarquia que seria alcançada com a cisão de Kasparov, em 1993.
O pior de tudo, provavelmente, foi que a acusação de Fischer, colocou em defensiva não somente os soviéticos, mas pessoas que estavam bastante longe de concordar com a propaganda anti-comunista. O autor destas linha deve confessar, honestamente, que foi um desses.
Mas isso não aconteceu por acaso: mesmo hoje, basta uma releitura do artigo de Fischer para perceber que o autor não está mentindo, pelo menos não no sentindo em que, em geral, se usa a palavra ´mentira`. Ele realmente tinha convicção no que dizia. Essa é a força maior do texto, pois não é uma experiência comum para a maioria das pessoas travar contato com alguém convicto, não de uma crença, mas de um fato, e, ao mesmo tempo, o suposto fato não ser verdade.
Para dificultar ainda mais a distinção entre fato e fantasia, entrou em cena a máquina da mídia e dos órgãos governamentais norte-americanos. Pouco tempo antes, em 1958, o FBI desconfiara que Fischer havia sido recrutado como espião pelos soviéticos. Agora, haviam conseguido, um propagandista ideal, ainda que inconsciente (ou ideal por causa disso mesmo): alguém que acreditava no que dizia, e contava uma história, digamos, plausível.
Nessa época, evidentemente, não se sabia que o FBI vigiava a família de Fischer desde a década de 40. Os documentos referentes a isso somente seriam liberados, com inúmeras tarjas negras sobre o texto, em 2002.
A última dificuldade foram os desmentidos soviéticos (inclusive os de Keres e Petrosian), que não ajudaram a elucidar a questão. Eram desmentidos - o que é outro sinal da defensiva dos soviéticos a partir de Kruschev - genéricos. Não demoliam os desmontavam as alegações do oponente - o que, sem dúvida, é o caminho seguro para a derrota, mesmo quando se está com a verdade, e o adversário com a mentira. Se a verdade pudesse se impor somente porque é verdade - ou seja, sem o esforço dos que estão com ela para desmacarar a mentira - o nazismo e o macartismo não teriam existido, e o mundo de hoje seria um maravilhoso Shangri-La. Mas não é assim, sem luta, que as coisas funcionam.
CURAÇAO

Examinemos as alegações.
Em seu artigo, Fischer exectua Tahl da conspiração soviética. Até ele reparou que incluí-lo transformaria, antes de tudo para si próprio, a acusação num absurdo. Se há algo que Tahl jamais faria, era, precisamente, combinar um empate. Além disso, depois de 21 rodadas, ele abandonou o torneio por motivos de saúde - e Fischer visitou-o no hospital, sendo recebido de forma muito amistosa pelo ex-campeão mundial. Portanto, para acreditar na conspiração, Fischer teria que colocar Tahl fora dela.
Porém, como observou o enxadrista e escritor holandês Tim Krabbé, também é necessário excetuar Korchnoi - não exatamente, como diz Krabbé, porque ele sempre negou, mas por razões políticas e também porque até hoje ninguém conseguiu incluí-lo nessa história. (V. Tim Krabbé, The legend of the Curaçao conspiracy, in Open Chess Diary, nota 299, de 22/10/2005).
Com isso, a conspiração fica reduzida ao envolvimento de três jogadores soviéticos: Petrosian, Keres e Geller. Novamente, como em 1948, é sobre Keres que se concentra a intriga. Recentemente, buscou-se o apoio de Yuri Averbakh (coisa, aliás, bastante fácil - v. parte 5 deste artigo) para dizer que "é claro que foi tudo manipulado" para prejudicar Keres (entrevista de Averbakh para a Schaaknieuws, cit. por Krabbé).
De onde se conclui que, em Curaçao, 1962, teria existido, não apenas uma, mas duas conspirações soviéticas: uma, com a participação de Keres, contra Fischer: a segunda, dos outros soviéticos contra o próprio Keres...
(continua)